sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Audiossustentável

Por Bruno Mariani.

Hoje, 21 de setembro, é o Dia da Árvore, que marca o início da primavera! Isso me faz lembrar que o primeiro semestre deste ano ficou marcado pela realização da Rio +20, Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, cujo tema central foi a proposição de mudanças no modo como estão sendo usados os recursos naturais do planeta.

A natureza é a origem de todo som!


A propósito, a única referência a áudio na Rio +20 foi no edital de licitação para contratação de sonorização meio ambiente para o evento. Mas isso não significa que os profissionais de áudio e música não estão preocupados com a natureza, pelo contrário, o mercado de instrumentos musicais e equipamentos de som já desenvolveu diversos produtos baseados na filosofia do desenvolvimento sustentável.


Violões e Guitarras


Boa música exige boa madeira! Sabendo disso, os fabricantes de violões e guitarras utilizam madeiras nobres e raras extraídas de árvores com 250 anos de idade, em virtude das características estéticas e tonais exigidas para se construir bons instrumentos!

Embora a indústria da música não seja a grande responsável pela devastação das florestas, os fabricantes estão preocupados, já que a sustentabilidade da madeira é fundamental para a viabilidade a longo prazo da indústria de instrumentos de cordas.

Pensando nisso, foi fundada a coalizão MusicWood, formada pelo Greenpeace, Fender, Gibson, Martin, Taylor e Yamaha, com o objetivo de proteger as florestas ameaçadas e garantir a preservação das espécies mais importantes para a fabricação de instrumentos musicais. Em breve será lançado um documentário sobre o tema.

Tal preocupação inspirou a fabricação de guitarras e violões ecologicamente corretos, fabricados a partir de materiais alternativos e recicláveis. É o caso, por exemplo, das guitarras Cyclotron, cujo corpo é 100% construído com materiais encontrados no lixo, como copos descartáveis, garrafas PET e potes de iogurte. Destacam-se também as iniciativas de fabricação de guitarras e baixos que utilizam compostos sintéticos (Flaxwood Guitars), materiais orgânicos (Mada Guitars) e madeiras de reflorestamento (Zero Impact Guitars).

Tecnologia brasileira na fabricação de "guitarras verdes".

O Brasil também contribui nesse sentido, com destaque para a linha de guitarras Echo Music, que utiliza um processo de produção totalmente focado na sustentabilidade. Madeira, ferragens, captadores, cordas, pintura, palhetas, tudo "pensado e planejado pelo viés ecológico".



Bateria e Percussão


Por ser um dos instrumentos musicais que mais depende da madeira como matéria-prima, a bateria é um excelente candidato para um redesenho ecológico. Assim, dada a reduzida disponibilidade de madeiras nobres na natureza, a DW Drums desenvolveu a linha de baterias acústicas ECO-X, fabricadas predominantemente com bambu. Bonito, leve, resistente e renovável, o bambu é visto como grande alternativa à madeira e promessa para o desenvolvimento sustentável.

www.dwdrums.com/drums/ecox

Outros instrumentos percussivos também se adaptam bem à essa filosofia do "som sustentável", como demonstrado pelos grupos StompUdigrudi e GEM, que exploram com maestria a sonoridade e a musicalidade de instrumentos de percussão criados a partir de materiais recicláveis e reutilizáveis.

GEM - Música e Sustentabilidade



Piano e Teclado


Uma das grandes polêmicas ambientais na história da música foi a utilização do marfim como matéria prima para a fabricação das teclas de piano. A partir do momento em que espécies de elefantes foram ameaçadas de extinção, a forte pressão da sociedade e dos ambientalistas fez com que a indústria de pianos acústicos buscasse outras alternativas. Hoje as teclas são fabricadas basicamente de madeira e plástico.

Ocorre que esses materiais não proporcionam a mesma sensação tátil oferecida pelo marfim, o que levou a Yamaha a desenvolver um material sintético chamado "Ivorite", que se aproxima bastante da aparência e da textura do marfim. O termo "Ivorite" vem de "Ivory", que é a tradução para marfim. Essa tecnologia está disponível nos pianos de elite da Yamaha, tanto nos acústicos quanto nos digitais.



Com relação aos teclados e sintetizadores, sua maior contribuição para o desenvolvimento sustentável é a constante redução no consumo de energia elétrica. Para efeito de comparação, o Yamaha DX7, lançado em 1984, consumia 40W de potência. Já o Motif XF, o top de linha da Yamaha atualmente, consome apenas 30W. Ou seja, 25% menos energia para um poder de processamento e memória infinitamente maior!

Além disso, os teclados atuais possuem a função de desligamento automático, o que evita o consumo desnecessário de energia quando o usuário esquece de desligar o instrumento. Outra melhoria é a redução no peso, refletindo o uso mais racional de metais e plásticos na fabricação dos equipamentos.



Áudio Profissional


Enquanto os instrumentos musicais abraçaram de vez a causa da sustentabilidade, a indústria de áudio profissional ainda se mostra bastante tímida nesse sentido. Por ser um mercado menor e mais restrito, se comparado ao de instrumentos musicais, o custo de se desenvolver equipamentos de áudio sustentáveis não deve ser interessante para os grandes fabricantes, do ponto de vista financeiro e institucional. Mais um daqueles casos em que o interesse econômico capitalista fala mais alto que questões ambientais...

Apesar disso, existem iniciativas num segmento de mercado alternativo onde se identificam equipamentos de áudio profissional preocupados com o impacto ambiental e a sustentabilidade. É o caso, por exemplo, do microfone ecológico Amazon EcoMic, desenvolvido no Brasil pela Alo Som da Amazônia e vencedor do Prêmio FINEP de Inovação 2009. O corpo do microfone é fabricado com resíduos de madeira que não tem valor comercial e que seriam destinados à queima ou aos lixões da cidade de Manaus. Outras partes do acabamento são feitas com o anel de vedação de garrafas PET e por caroço de tucumã seco.



Já na Itália, destacam-se os amplificadores de potência da linha Green Audio Power, fabricados pela Powersoft, que operam com baixo consumo de energia mesmo em elevadas potências. Seu funcionamento consiste basicamente no uso de uma tecnologia que permite a transformação de toda a corrente elétrica de entrada em energia útil, e na reutilização da energia reativa devolvida pelos auto-falantes. Além disso, os amplificadores requerem menos refrigeração, pois aquecem pouco e são menores e mais leves.

Segundo cálculos apresentados pelo fabricante, caso esses amplificadores fossem utilizados num show de música com seis horas de duração, seriam economizados 432 kWh de energia elétrica e a emissão de CO2 seria reduzida em 13.000 tons, em relação a um sistema de amplificação de áudio tradicional.

Amplificador "verde".


Não poderia deixar de mencionar a obra Sun Boxes de Craig Colorusso, que consiste numa instalação de 20 caixas de som alimentadas exclusivamente por energia solar, através de painéis solares independentes, sem o uso de baterias ou qualquer outra fonte elétrica! Trata-se de uma exposição de arte, não de um produto comercial, mas mostra que é possível desenvolver caixas de som baseadas num modelo sustentável. O documentário INSTALL mostra mais detalhes da operação das caixas.

Uma pena não funcionarem à noite!



Áudio Consumidor


No mercado consumidor, são vários os produtos de áudio desenvolvidos com a temática da preservação do meio ambiente. Caixa de som, rádio, camiseta, toca-discos, fone de ouvido e outros... Os mais interessantes, na minha opinião, são a Sound Charge, camiseta que transforma som em energia elétrica para recarregar o celular, e a iBamboo, caixa acústica de bambu tipo dock para iPhone. Selecionei alguns exemplos abaixo, mas existem vários outros mundo afora.


Caixa acústica e dock iBamboo.



Camiseta Sound Charge.


Cardboard: rádio de papelão reciclado.


Toca-discos Sennheiser Eco-Vinyl Turntable.


Fone Noisezero O+ Eco: aço e ferro reciclados e bio-plásticos de amido de milho. 


Rukus Solar: caixa de som amplificada a energia solar.


É isso! Vida longa a todas as árvores para que tenhamos bons instrumentos e boa música por várias gerações!


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sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Gírias do Som

Por Bruno Mariani.



      "- Posso ligar meu teclado pra passar o som?
      - Claro, conecte seu cabo nessa medusa aí do lado.
      - Falta peso! Pode abrir mais o retorno?
      - Não dá... vai ficar sobrando e gerar microfonia.
      - Então pede pro roadie trazer o in ear pra mim."



Na profissão de técnico de som, a quantidade de termos técnicos é tão grande que foi possível reuni-los em um dicionário. Mas nem isso foi suficiente para cobrir toda a gama de palavras utilizadas pelos profissionais do áudio. Isso porque boa parte dos diálogos cotidianos se baseiam em expressões de linguagem carregadas de subjetividade: as gírias!



Painel multicabos, vulgo medusa!


De fato, as palavras mais utilizadas no contexto do áudio e da música formam um vocabulário repleto de jargões que se traduzem numa linguagem totalmente nova, facilitando a comunicação entre os profissionais e gerando uma identidade própria às diversas tribos do universo sonoro e musical. Porém, pra quem não é do ramo, fica difícil compreender esse dialeto! O entendimento do significado dessas gírias e expressões exige alguma especulação filosófica.Vejamos...


Som Aveludado


Em áudio não há nada mais nobre que um som aveludado. É a característica conferida a uma sonoridade suprema, equilibrada, consistente, macia. Apesar da tentativa, as palavras não são suficientes para descrevê-lo. Como nas descrições de vinhos e cafés gourmets, a melhor maneira de entendê-las é experimentando!

Assim, minhas melhores referências de som aveludado são a voz de Norah Jones, o violão de João Gilberto e a voz do ex-mendigo Ted Williams.

Ted Williams: exemplo de voz aveludada.


Pode parecer delírio associar veludo, aquele tecido fofinho, a qualquer tipo de sonoridade. E é! Na verdade, o mais próximo que veludo pode chegar do som é no revestimento interior dos cases de instrumentos musicais! Mas apesar da subjetividade que carrega, a expressão é frequentemente usada por profissionais do áudio e da música. Basta citar Sólon do Valle, guru do áudio no Brasil, em sua obra "Microfones":

"Este grupo de instrumentos de sopro: flauta, piccolo, clarinete, oboé, fagote, corne inglês, clarone, etc, se caracteriza pelo som suave, tendendo para o aveludado."
" (...) Este tipo de microfone, de grande tamanho, foi celebrizado nos modelos 44-BX e 77-DX da RCA, usados em grande escala na era do rádio (anos 40 e 50) pela sua qualidade de som "aveludada" e baixa distorção."
Sólon do Valle.


Microfone Duro e Microfone Macio


E por falar em microfones, outra gíria bastante usual é a de se definir um microfone como "duro" ou "macio".

"Microfone macio é aquele fofinho na ponta, tipo almofadinha!"

Nada a ver, não viaja!


Um microfone é chamado de macio quando possui elevada sensibilidade de captação. Tal sensibilidade permite que mesmo os sons mais suaves, de pequeníssima intensidade, sejam captados com precisão pelo microfone, conferindo um alto grau de detalhamento ao registro sonoro. Por isso são os preferidos dos estúdios de gravação.

Por outro lado, essa elevada sensibilidade acaba por restringir sua aplicação em determinadas ocasiões, como no caso de um show a céu aberto, onde os ruídos do vento e da vibração do palco seriam todos captados, o que prejudicaria a qualidade final do som.

Os microfones condensadores (ou capacitivos) são os que melhor se enquadram no grupo dos macios, sendo eventualmente aparelhados com acessórios como "pop filterse "aranhas" para minimizar os ruídos indesejáveis do vento/sopro e das vibrações.


Microfone "macio" com "aranha" e "pop filter".
Ideal para captação de voz "aveludada".


Já um microfone "duro" se caracteriza pela sua robustez e direcionalidade. É o microfone mais comum, utilizado no dia a dia dos palcos e ensaios. Suporta altas pressões sonoras e é imune a ruídos de manuseio, mas não é capaz de captar sons de baixa intensidade. Por ser bastante direcional, consegue rejeitar sons e ruídos alheios à fonte sonora principal.

Shure SM58: esse aguenta porrada!



O uso dessa expressão é tão comum no meio técnico que chegou a ser cobrado em prova de concurso público. Foi no processo seletivo realizado em 2010 para o cargo de Operador de Cine, Foto e Som da Câmara Municipal de Passo Fundo - RS. Pedia-se para assinalar a alternativa incorreta:

Entende-se por microfone "duro":
(a) Resistente ao uso.
(b) Responde a baixas pressões sonoras.
(c) Extremamente direcional.
(d) Imune a ruídos de manuseio.
(e) Que suporta altíssimas pressões sonoras.


Salas


Em áudio, uma sala é qualquer ambiente fechado onde haja reprodução sonora. O curioso é que, para os profissionais, as salas são seres animados dotados de vida própria! Uma sala pode falar, vibrar, sentir, brilhar, viver, morrer, engordar, emagrecer, entre outras coisas! Mais um pouco e veríamos salas andando por aí!

Veja este trecho extraído do livro "Manual Prático de Acústica", de autoria do Professor Sólon do Valle:

"Uma sala cujo RT60 suba muito mais de 50% nos graves será "retumbante" ou "cavernosa". Se o tempo não subir nos graves, a sala soará "magra". Por outro lado, se não houver queda suficiente do RT60 nos agudos, a sala ficará "brilhante" demais ou "áspera"; e se a queda nas altas frequências for excessiva, teremos uma sala "abafada" ou "escura"."
Sólon do Valle.


Ou seja, a sala muda de personalidade conforme o som se comporta lá dentro! Esses conceitos, ou melhor, gírias associadas à sonoridade de uma sala são de difícil compreensão, pois apresentam um caráter altamente subjetivo. Note que o autor lança esses termos de maneira muito natural, sem se preocupar em definí-los, partindo do princípio de que é uma linguagem conhecida pelos profissionais de áudio.

Enfim, por mais abstrato que seja, me arrisco a explicar tecnicamente o significado de alguns desses termos:

Sala morta - ambiente cujos materiais de revestimento das superfícies (paredes, chão, teto) apresentam alto índice de absorção acústica, o que minimiza as reflexões do som e confere à sala uma sonoridade de pouca ou nenhuma reverberação.
Sala morta!

Sala viva - ambiente que se caracteriza pelo baixo índice de absorção acústica, de modo que a maior parte do som é refletida pelas superfícies da sala.
Sala viva.
Fonte: http://www.byknirsch.com.br/artigos-06-01-salaviva2.shtml

Sala brilhante ou áspera - onde predominam as altas frequências, ou seja, ouve-se agudos em excesso.
Sala abafada ou escura - ausência de médios e agudos, pouca definição.
Sala retumbante ou cavernosa - onde predominam as baixas frequências, com excesso de graves, grande amplitude e profundidade. 
Sala magra - deficiente nos graves, tipo "carro da pamonha"!



Enfim, a lista de gírias do áudio e da música é imensa e não caberia ficar aqui divagando sobre todas elas! Então convido o leitor a complementar este artigo deixando registrado nos comentários as gírias mais usadas no seu dia a dia de músico ou técnico. Vou ficando por aqui, pois o "batera" está lá no "aquário" esperando uma "cama" em Fá menor pra poder gravar o "take".


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terça-feira, 29 de maio de 2012

Áudio, Música e Tribunais

Por Bruno Mariani.

Áudio e música se encontram não apenas nos palcos e estúdios de gravação, mas também nos tribunais! Frequentemente o Poder Judiciário é acionado para se pronunciar sobre conflitos envolvendo esses temas. Há cinco anos trabalhando como técnico de som em um tribunal de justiça, pude acompanhar de perto alguns julgamentos polêmicos que, na maioria dos casos, foram favoráveis à "mais sublime de todas as artes" !



Furto de Instrumentos Musicais


Antes mesmo de entrar para o tribunal, tive a primeira experiência prática com o assunto! Em meados do ano de 2001, a Banda Maracujá pro Bebê - da qual eu faço parte até hoje - teve seus instrumentos furtados do seu local de ensaio na véspera de um importante show, no auge de sua trajetória! Na calada da noite, foram roubados teclado, baixo, guitarra e pedaleira de efeitos. Com a ajuda da polícia, o guitarrista Leandro Naves conseguiu recuperar seus equipamentos, que estavam à venda no dia seguinte na vitrine de uma loja de instrumentos musicais no centro da cidade! Infelizmente, o baixo e o teclado não foram encontrados...

O local dos ensaios era a casa dos meus pais, que era coberta por um seguro residencial contratado de uma grande seguradora. Acionamos o seguro e, para nossa surpresa, o pagamento do prêmio foi negado sob o argumento de que a apólice não contemplava a cobertura para "equipamentos de uso profissional"! A propósito, cabe aqui um comentário: nesses cinco anos de tribunal, o que mais tenho visto são processos judiciais contra seguradoras que se recusam a indenizar seus clientes, sempre com fundamento em cláusulas excludentes (e abusivas!) de suas apólices.

Seguros no Brasil...


O baixista Teo Mendes, integrante da banda e na época estudante de Direito, redigiu uma excelente petição e ingressamos com uma ação no juizado especial de pequenas causas, onde o processo tramitou por quase dois anos. Ao final, a decisão do juiz nos foi favorável, obrigando a seguradora a pagar o valor dos instrumentos corrigido desde a data do furto. No entendimento do magistrado, "os instrumentos musicais eram utilizados para o próprio deleite do requerente, como forma de lazer de seus filhos, todos estudantes, não havendo nenhuma relação de atividade profissional do segurado com os instrumentos objetos do furto".

Isso que eu chamo de decisão acertada!



Ordem dos Músicos


A decisão judicial mais relevante para os músicos amadores e profissionais nos últimos tempos foi aquela proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011, referente à obrigatoriedade de registro de músico em entidade de classe. No julgamento do Recurso Extraordinário RE/414426, de Santa Catarina, foi discutido se a atividade profissional de músico necessita de inscrição e pagamento de mensalidades à Ordem dos Músicos do Brasil (OMB). O Plenário do STF, por unanimidade, decidiu:
"Nem todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão."
Em outras palavras, ficou decidido que a atividade de músico não depende de registro ou licença, e que a sua livre expressão não pode ser impedida por interesses do órgão de classe.

Era uma vez a OMB...

A relatora do processo foi a Ministra Ellen Gracie, que fundamentou seu voto no sentido de que "a liberdade de exercício profissional é quase absoluta" e que "qualquer restrição a essa liberdade só se justifica se houver necessidade de proteção do interesse público”. Em relação à atividade de músico, a ministra avaliou que não há qualquer risco de dano social: “Não se trata de uma atividade como o exercício da profissão médica ou da profissão de engenheiro ou de advogado”. Por fim, para dar um tom de poesia à sua decisão, a ministra completou:
“A música é uma arte em si, algo sublime, próximo da divindade, de modo que se tem talento para a música ou não se tem.”
Ministra Ellen Gracie.

Obrigado, ministra!

Os outros ministros não deixaram por menos e daí pra frente foi um festival de pancadas em cima da OMB! Nas palavras do ministro Ricardo Lewandowski, "a Constituição garante a todos os brasileiros o acesso aos bens da cultura e as manifestações artísticas, inegavelmente, integram este universo". Segundo ele, uma das características dos regimes totalitários é exatamente este, “o de se imiscuir na produção artística”. Com maestria, finalizou:
"Seria o mesmo que exigir que os poetas fossem vinculados a uma Ordem Nacional da Poesia para que pudessem escrever."
Ministro Ricardo Lewandowski.


O ministro Ayres Britto lembrou que "a Constituição Federal garante a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, logo, não seria possível exigir esse registro, pois a música é uma arte." E de maneira brilhante, concluiu:
“E, no caso da música, sem dúvida estamos diante de arte pura, talvez da mais sublime de todas as artes.”
Ministro Ayres Britto.



Essas decisões soam como música nos nossos ouvidos! Aplausos para o STF!



João Gilberto, O Mito


Em dezembro de 2011, o Superior Tribunal de Justiça analisou disputa polêmica envolvendo a gravadora EMI e o mestre da Bossa Nova, João Gilberto, em torno do lançamento do CD "O Mito". Esse disco foi lançado pela EMI como uma coletânea que reuniu todas as canções dos três primeiros discos do cantor gravados em vinil - Chega de saudade, de 1959; O amor, o sorriso e a flor, de 1960 e João Gilberto, de 1961. Esses álbuns são talvez os mais importantes na história da música brasileira, pois projetaram a bossa nova no cenário da música internacional.


Difícil de encontrar, esse disco pode custar mais de R$200 no Mercado Negro.

A primeira pisada de bola da EMI em "O Mito" foi ter feito seu lançamento e comercialização sem a devida autorização de João Gilberto. Isso, por si só, já seria motivo suficiente para uma demanda judicial, mas não foi o único...


Encarte


O material encartado na capa do álbum do CD atribui a João Gilberto a seguinte descrição:
"Uma das personalidades mais estranhas da música brasileira de todos os tempos, capaz de conjugar atitudes as mais insólitas e reações completamente inusitadas. Daí o verdadeiro folclore que envolve a figura de João, a quem só podemos chamar... o mito."

Ao invés de ressaltarem as qualidades musicais de João Gilberto, optaram por destacar traços polêmicos de sua personalidade, definido-o como "personalidade mais estranha da música brasileira"! O sujeito pode até não se enquadrar totalmente em um padrão de comportamento considerado normal - característica bastante peculiar aos gênios como ele -, mas escrever isso no encarte do seu próprio disco é sacanagem!


Faixas


As faixas deste CD foram organizadas numa ordem totalmente aleatória, sem qualquer referência ao roteiro original das músicas nos LPs. Ora, quem é do ramo da produção musical sabe  que a sequência das canções num disco é algo tratado com a maior cautela, onde se consideram as relações de tonalidade entre as faixas, andamentos, letras, contexto histórico, etc. Ou seja, trata-se de um conceito cuidadosamente planejado para conferir coerência ao álbum. Ao fazer uma salada e misturar todas as músicas dos três discos numa ordem qualquer, a EMI descaracterizou as obras do autor!

Esse assunto é tão sério que o Pink Floyd, em 2010, conseguiu na justiça inglesa proibir a mesma EMI de vender suas canções de maneira avulsa em sites de download (como é comum no iTunes, onde você pode comprar uma única música de um disco). No julgamento, o juiz concordou com o argumento da banda de que tal prática viola a integridade artística dos álbuns. Mais do que justo preservar o conceito por trás de uma obra como The Wall, por exemplo...


Remasterização


Mas, no caso de "O Mito", o maior problema foi em relação à qualidade do áudio. Como se sabe, o processo de digitalização e remasterização tem como objetivo restaurar o áudio original, conferindo-lhe uma sonoridade mais limpa e cristalina que aquela dos discos de vinil antigos. No entanto, em razão da popularidade do MP3 e da guerra dos volumes, as gravadoras acabam exagerando nesse processo para tornar o produto mais comercial, abusando de técnicas de equalização e compressão. Esse fato pode até passar despercebido para a maioria dos mortais, mas não para os ouvidos extremamente exigentes de João Gilberto! Para ele, o processo de remasterização causou violação das suas obras originais.

O cara tem motivos de sobra pra ficar aborrecido!


Decisão


Ao analisar o processo, o STJ decidiu:
"É  direito  moral  do  autor,  inalienável,  portanto, recusar  modificações  não autorizadas  de  sua  obra, constatadas por perícia e firmadas como matéria fática pelo Acórdão recorrido,  modificações  essas realizadas por  ocasião  de  processo  de "remasterização”, independentemente  de  a  obra indevidamente modificada  vir  a receber  láureas  nacionais  e internacionais  respeitáveis,  quando  resta  patente  e durável  o  constrangimento  do  artista  pela  ofensa  à identidade da obra."

Ministro Sidinei Beneti.


O acórdão desse julgamento é relativamente extenso, com 65 páginas, mas vale a pena sua leitura integral, principalmente em razão da fundamentação técnica de peritos e testemunhas presentes nos autos, entre eles Caetano Veloso e Paulo Jobim (filho de Tom Jobim). Seguem alguns trechos interessantes:


"Procurei quantificar o nível de equalização através do analisador de frequências PAZ/Waves. Encontrei níveis bastante altos de equalização, realçando algumas frequências em até 7db e atenuando outras em até –5db. O efeito prático dessa equalização foi o total desequilíbrio da mixagem original, realçando a bateria e as cordas em detrimento da voz e do violão, que deveriam ser exatamente o centro das atenções. Se tal equalização fosse aplicada a uma peça complexa com orquestra, por exemplo, “a Sagração à primavera”, de Igor Stravinsky, o resultado seria uma outra música, com o trabalho de interpretação e equilíbrio do maestro jogado fora. (...)
Constata-se um aumento enorme de frequências e reverberações. Isto pode ser visto nos gráficos FFT (Transformadora Fourrier) que mostram a mudança do espectro de frequências ao longo do tempo. Na prática, a gravação perdeu a transparência nas frequências médias e as reverberações agudas se tornam muito evidentes, atrapalhando a audição. Acrescenta-se o supérfluo, escondendo o fundamental. 
Além disso, essa equalização tão violenta chegou a alterar o timbre da voz do cantor, tornando-a muito metálica e dura. Isso pode ser constatado no espectro de frequências da sílaba “E- de “era uma vez um lobo mau” na música “Lobo Bobo”. Neste momento só existe a voz do cantor e pode-se perceber claramente no gráfico como a relação entre os harmônicos da voz muda violentamente. Esta relação entre os harmônicos é o que diferencia o timbre de uma flauta, do de um oboé, ou a voz de João Gilberto, da voz de Milton Nascimento ou de Dorival Caymmi. Cada um tem a sua 'assinatura de harmônicos' particular, fazendo com que possamos reconhecê-los (...)."
Paulo Jobim.


Dá pra notar que ele entende do assunto! E Caetano Veloso completa:


“A remasterização de Discos de Vinil Long Playing (LP's) para produção de discos Compactos (CD's) consiste em traduzir-se para a linguagem digital o som gravado analogicamente. Como a reprodução não se dá de forma mecânica, e, em tese, os ruídos são eliminados. Por outro lado, o produto sonoro ganha em durabilidade. Quando os CD's surgiram, no início da década de oitenta, houve músicos, técnicos e mesmo simples consumidores que puseram em dúvida a qualidade do som captado e reproduzido de forma digital. Mas a limitações que eram apontadas – perda nas altas frequências, estreitamento da faixa sonora – foram minoradas ou totalmente superadas pelo amadurecimento do uso da nova técnica. Assim, muito do que já estava no mercado fonográfico em forma de discos de vinil foi devidamente remasterizado para produção de CD's. O que trouxe benefícios financeiros para as gravadoras e, consequentemente, para muitos artistas. Tais benefícios, entretanto, não foram proporcionados a João Gilberto, em virtude da péssima qualidade da masterização e do processamento, como descrito pelo perito do Juízo. Ao contrário: por essas falhas gritantes da Ré, João Gilberto sofreu e continua sofrendo incalculáveis prejuízos.”

Caetano Veloso.



Por outro lado, não se pode desconsiderar o posicionamento do ministro Massami Uyeda, que foi o único a discordar da decisão. Para ele, embora haja nos autos provas que comprovam a alteração na qualidade musical, apenas quem é expert percebe a mudança. Segundo ele, a população não tem capacidade de notar essas falhas, daí porque não haveria dano a ser reparado.


"Ante a leitura dos autos e no esteio da prova carreada aos autos, tem-se que, em linhas gerais e para grande parte do público, não são passíveis de serem detectadas as 'alterações impostas na regravação das matrizes da obra do artista autor. Tanto é assim que notícias existem no sentido de que as obras remasterizadas alcançaram sucesso de venda, inclusive agraciando o autor com prêmio.
As mudanças mencionadas foram detectadas por pessoas extremamente ligadas à música e atividade de produção da mesma, conforme demonstra depoimento da testemunha Edna Maria de Almeida (estudiosa e admiradora da obra do autor); bem como pelo 'expert' designado pelo Juízo que revelou-se inclusive bastante honrado com o desempenho de suas atividades no caso em tela.
Em que pese o teor da prova acima e, em especial, da prova técnica, entende este Juízo que a situação apontada nos autos escapa a esfera do homem comum, tratando-se de sensibilidade extremada e, por isto, não restariam configurados de forma patente os danos de cunho moral".
Ministro Massami Uyeda.



ECAD



Nesses cinco anos trabalhando no tribunal, fica evidente que o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) é a instituição que mais provoca o Poder Judiciário sobre questões envolvendo áudio e música. O ECAD, cuja principal função é recolher direitos autorais de execuções musicais e distribuí-los aos seus titulares, obteve um crescimento de 64% nas arrecadações nos últimos cinco anos. Em 2011, foram distribuídos mais de 400 milhões de reais aos compositores, intérpretes, músicos, editores musicais e produtores fonográficos associados. Esse monte de dinheiro acabou chamando a atenção de muita gente!


Boa parte desse crescimento na arrecadação do ECAD se deu em razão da sua forte atuação nos tribunais. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, há quase 3 mil processos envolvendo o escritório, sendo ele próprio o autor de cerca de dois terços dessas ações, muitas delas polêmicas!


Cantou no chuveiro, tem que pagar!


Hotéis



Um processo interessante que chegou ao STJ em 2011 era relacionado à cobrança de direitos autorais de   hotéis, motéis e pousadas que possuem aparelhos de rádio ou TV em suas acomodações. O ECAD alega que oferecer esses equipamentos nos quartos ajudaria os hotéis a captar clientes, o que geraria lucro indireto, e que os hotéis são locais de frequência coletiva, portanto devem recolher direitos autorais das programações reproduzidas nos quartos.


"Ademais, há que se deixar claro que o Hotel ou Motel, ao oferecer serviços como sonorização do ambiente  o aposento, ou colocar à disposição do hóspede aparelhos de rádio e televisão, inclusive TV por assinatura, além de captar clientela, adquire, conforme Regulamento de Meios de Hospedagem de Turismo, pontos para a classificação do estabelecimento, ou seja, caso ofereça tais serviços, os quais são incluídos no valor cobrado pela diária, maior será o número de estrelas, atualmente utilizadas como índice de classificação.
Neste sentido, bastará portanto, que o estabelecimento comercial público, considerado para os efeitos legais, como local de frequência coletiva, coloque à disposição de seus frequentadores, quer nas áreas comuns, quer nos aposentos, através da captação das diversas programações de emissoras de radiodifusão,  aparelhos fonomecânicos ou citados pela mencionada lei."

ECAD.


O hotel, em sua defesa, tenta mostrar que o quarto não é local de frequência coletiva, mas sim uma acomodação privada, portanto o uso de rádio ou TV nos aposentos não caracteriza execução pública.

"Os quartos de hotel não são considerados locais de frequência coletiva, não havendo qualquer "execução pública" eis que a utilização dos aparelhos de rádio e televisão instalados ocorre somente pelo hóspede que está utilizando o quarto, de forma privada, que assim como ouve rádio e assiste televisão em sua casa o fará no hotel em que hospedado, sintonizando na emissora que melhor lhe convier, sem qualquer ingerência do hotel neste ponto.

Assim, muito embora o texto da Lei 9.610/98 refira que se considera como locais de frequência coletiva os hotéis, os quartos dos mesmos não podem ter esta mesma definição. Isso porque, conforme já referido, a noção de frequência coletiva parte do pressuposto de que deve haver a execução pública, a qual obviamente não condiz com a captação de música em rádio nos aposentos."

Hotel Continental S/A.


O ministro Sidnei Beneti, entretanto, entendeu que a Lei 9.610/98 considera legal a cobrança do Ecad sobre o uso dos aparelhos em quartos de hotel, entendimento que foi acompanhado pela maioria da Seção. 


Leia a íntegra da decisão: REsp 1.117.391.




Liberdade de Culto



Mas nem sempre o ECAD sai vencedor nas demandas judicias. O caso diz respeito à possibilidade de cobrança de direitos autorais em razão de uma escola de Vitória/ES ter realizado execuções musicais e sonorizações ambientais quando da celebração da abertura do Ano Vocacional em Escola, evento religioso, sem fins lucrativos e com entrada gratuita.


Há um entendimento pacificado no STJ de que, mesmo em eventos gratuitos, cabe arrecadação dos direitos autorais por parte do ECAD. Mas há exceções... Ao analisar o processo, o STJ decidiu que eventos religiosos e sem fins lucrativos se enquadram numa das hipóteses em que se admite a reprodução não autorizada de obras de terceiros.


Só mesmo muita reza pra vencer o ECAD nos tribunais!


Tal entendimento se baseou, principalmente, em legislações internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Convenção de Berna para a proteção de obras literárias, artísticas e científicas (1886) e o Acordo OMC/TRIPS (Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio).


O ministro relator do processo apontou que a legislação internacional admite a restrição de direitos autorais, desde que não interfira na exploração normal da obra ou prejudique injustificadamente o titular. Portanto, no caso em análise, ficou decidido que deveria prevalecer o direito fundamental à liberdade de culto, frente ao direito do autor.

"O evento de que trata os autos – sem fins lucrativos, com entrada gratuita e finalidade exclusivamente religiosa – não conflita com a exploração comercial normal da obra (música ou sonorização ambiental), assim como, tendo em vista não constituir evento de grandes proporções, não prejudica injustificadamente os legítimos interesses dos autores.
Também o primeiro dos requisitos se faz presente no caso dos autos, que pode ser considerado, nas palavras da lei, “especial”, já que realizada, em Escola, a celebração de abertura do Ano Vocacional, cerimônia sem fins lucrativos, com entrada gratuita e finalidade exclusivamente religiosa. Prepondera, pois, neste específico caso, o direito fundamental à liberdade de culto e de religião frente ao direito de autor. "
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.

Amém.



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quarta-feira, 25 de abril de 2012

Papéis de Parede

Menos é mais. Essa máxima é principalmente válida em manifestações artísticas, quando a beleza da obra se destaca justamente pela sua simplicidade, seja em literatura, design, pintura, cinema, etc. A prova mais recente disso foi a premiação do Oscar 2012, cujo vencedor foi o filme O Artista. Na era do cinema 3D de alta definição e do som digital surround, o prêmio de melhor película vai para um filme em preto e branco e mudo!


Em música não é diferente. Na maioria das vezes, um arranjo musical simples tem mais aceitação que um arranjo repleto de instrumentos e com passagens melódicas e harmônicas complexas.


Wallpapers


O site simpledesktops.com apresenta uma grande variedade de temas para área de trabalho que seguem essa tendência minimalista, dentre os quais pude destacar alguns papéis de parede que fazem referência a áudio e música. Acesse o site oficial para baixar essas e outras imagens em alta resolução e aproveite para mudar a cara da tela do seu home studio!


Áudio








Instrumentos









Retro







Fonte: simpledesktops.com



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segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Mundo Trágico das Músicas Infantis

Por Izabel Freitas.


Oi! Eu sou a Izabel, esposa do Bruno. Pra quem imaginou que ele é casado com alguém do time da música e tecnologia, vou logo avisando que o mais próximo que cheguei de um "grave em casa" foi uma fita k7 que eu e minha irmã gravamos, quando descobrimos a utilidade da tecla REC do rádio gravador. E nem gravamos músicas, era a narração de vários livros infantis que tínhamos, com direito a voz diferente para cada personagem. :)

Enfim... Mesmo com toda essa experiência que tenho no assunto, o Bruno me convidou para escrever um artigo pro blog e, antes que eu perguntasse se ele estava doido, fui avisada de que seria sobre canções infantis! Ah tá, disso eu sei! Agora que temos nosso pequeno Miguel, esse assunto tem nos intrigado bastante porque, vira e mexe, no meio do chororô ou da brincadeira, nós, ou as vovós, vovôs e titios, desenterramos músicas que embalaram nossa infância e que têm um teor, digamos, sinistro!

Sinistro!


Vejamos as clássicas:

"Atirei o pau no gato-to-to, mas o gato-to-to não morreu-reu-reu. Dona Chica-ca-ca admirou-se-se, com o berro, com o berro que o gato deu!"
Miau!

Covardia com o bichinho! Se aparecesse no facebook, rapidinho ia rolar corrente para descobrir quem era o malfeitor.


"O cravo brigou com a rosa, debaixo de uma sacada. O cravo saiu ferido e a rosa despedaçada. O cravo ficou doente, a rosa foi visitar. O cravo teve um desmaio e a rosa pôs-se a chorar."

Parece o programa da Marcia Goldschmit + Maria do Bairro. Muito drama e lavagem de roupa suja, alem de violência doméstica. O cravo deve ser enquadrado na Lei Maria da Penha!


"Nana neném, que a Cuca vem pegar. Papai foi pra roça, mamãe foi passear".

Meu primo Sergio, de 5 anos, ao ouvi-la, pediu para a tia: "Não canta essa, que eu tenho sonho ruim!". Bonitinho! Refletindo sobre o teor das músicas.


"Marcha soldado, cabeça de papel, quem não marchar direito vai preso pro quartel. O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal. Acode, acode, acode a bandeira nacional."

Assédio moral, ameaças e tragédia! Esse eu nem comento porque envolve os militares.


"O fulano roubou pão da casa do João. Quem? Eu? Eu não! Foi o ciclano!" 
Calúnia, um ladrão e um dedo-duro. Todo mundo já viveu isso. Uma dose de realidade para as nossas crianças.




Pobre sambalelê, alem de estar doente, sofre violência física e psicológica. Triste e sério (e isso não é ironia, nem assunto para brincadeira).


"Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esse menino que tem medo de careta."

Essa me causou traumas!Eu tinha 4 anos e uma babá má cantava pra mim e dizia que o boi, o lobo e a cuca estavam no telhado e me buscariam, caso eu não dormisse logo. Os três! Ui!


Uma que eu adorava e o Bruno também:
"Lá vem o pato pata aqui, pata acolá. Lá vem o pato para ver o que é que há. O pato pateta pintou o caneco, surrou a galinha, bateu no marreco, pulou do poleiro no pé do cavalo, levou um coice, criou um galo. Comeu um pedaço de genipapo, ficou engasgado, com dor no papo, caiu no poço, quebrou a tigela. Tantas fez o moço que foi pra panela!"
Juro que penso em virar vegetariana quando ouço
história de bichinhos fofinhos que vão para a panela.
 



E a minha mãe sempre canta essa, que eu nunca tinha ouvido e me deixou espantada com tamanha violência e nenhuma explicação:
"Lá na rua 24, a mulher matou um sapo, com a sola do sapato!"

Numa dessas cantorias, minha irmã Daniela (memória de elefante) lembrou de outra, pior ainda, que a gente cantava para brincar tipo "andoleta":
"Lá em cima do piano, tem um copo de veneno,
Quem bebeu morreu, o azar foi seu!"

E poderia citar várias outras:

"Ciranda, cirandinha (...). O anel que tu me desta era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou."
"A canoa virou por deixarem-na virar. Foi por causa do fulano que não soube remar."
"Se essa rua, se essa rua fosse minha (...). Nessa rua, nessa rua tem um bosque, que se chama, que se chama solidão. Dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração."

O que eu penso sobre tudo isso? Acho muito engraçado e fico tentando imaginar qual seria a intenção de quem criou essas letras. Sinceramente, cresci ouvindo e cantando essas canções e elas não influenciaram negativamente no meu caráter. Tenho até lembranças muito boas de momentos em que cantava e dançava, com minha irmã e primas, ao som dessas cantigas!

Apesar disso, confesso que, depois de refletir sobre as letras, não gosto de cantar nenhuma delas para o Miguel. Penso que não acrescenta nada na vida dele ouvir coisas assim. Então, substituo por outras músicas ou faço adaptações para que as memórias da infância dele sejam recheadas de músicas, como as minhas são, mas as canções dele serão mais felizes e menos trágicas! Exemplos:

"Não atire o pau no gato-to-to, porque isso-so-so não se faz-faz-faz. O gatinho-nho-nho é nosso amigo-go-go. Não devemos maltratar os animais! Jamais!"
"Sambalelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, Sambalelê precisava, é de umas boas risadas....". 
"Nana neném, vamos cochilar. Papai foi pra roça, mamãe foi passear."
"Boi, boi, boi, boi da cara preta, lambe esse menino que tem medo de careta. Boi, boi, boi, não lambe ele não! Porque ele não gosta de baba de boi não."

E haja criatividade!! Por fim, deixo uma reflexão sobre a nova geração, que tem músicas e programas de televisão politicamente corretos, mas, muitas vezes, não tem pais presentes, amigos de carne e osso, brincadeiras de criança e tempo para ser feliz: não importa a inocência da canção, importa a inocência da infância!




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Izabel Freitas é Assistente Social, colaboradora e revisora do Grave em Casa e, desde que o Miguel nasceu, iniciou sua carreira de cantora e compositora de músicas infantis.